Tentar dar uma significação global à obra de Ingmar Bergman, fazer uma síntese de seus elementos constitutivos, é antes de tudo deixar-se embalar por uma série de imagens-mães que deixaram em nossa mente um traço indelével, signo de uma potência visual extraordinária. São imagens sempre marcadas por uma grande beleza plástica, que não constituem somente as fulgurações do estilo bergmaniano, mas imagens que trazem no interior de si mesmas a significação dos filmes e sobretudo sua tonalidade dramática, seu ritmo lento cortado por impulsos de emoções.
"Sucessão de impulsos e de repousos", tal como Stravinsky definiu a música.Ver um filme de Bergman é meditar, é ir o mais fundo possível no âmago do ser humano, é viajar por um planeta estranho à procura de uma chave que possa abrir nosso próprio cárcere para nos libertar de nós mesmos, nos fazer sair das trevas, acendendo a chama para que possamos caminhar melhor no nosso mundo interior.
Portanto, aqui o cinema é utilizado como instrumento de introspecção, como meio revelador de estados d'alma. Essa palavra alma, que é proferida de alguma maneira em todos os seus filmes, sem exceção, é a própria substância de sua obra. A alma dos personagens, invisível e abstrata que aparece, no entanto, nos espaços e nas formas, e sobretudo na expressão dramática dos atores, nos seus rostos filmados de perto. Rostos em sua terrível nudez, em sua beleza muda, traduzindo sentimentos. O que interessa é a alma, o rosto e o que está por trás do rosto.
E o caminho para penetrar na alma de um ser humano começa pelo rosto.Se a obra de um artista se define pela fidelidade a uma temática, então esse artista é Bergman, o cineasta da alma, mas também o cineasta do corpo, da pesquisa gestual do corpo, da presença física de personagens integradas ao cenário, personagens que fazem avançar a ação na medida em que são colocadas em cena como no teatro. Suprime-se o palco, corta-se a distância, de modo que a diferença entre a vida e o cinema desapareça. Nada mais aristotélico e menos brechtiano que a direção de atores em Bergman. A simplicidade, a sinceridade, a "cotidianidade" de seus intérpretes, seu natural, seu naturalismo mesmo, antes do seu talento, é o que fascina os espectadores, que os levam, aliás, a olharem em seus espelhos.
Cineasta intimista, artista abandonado por Deus, criança castigada pelo pai, recém-nascido que ainda não rompeu o cordão umbilical, Bergman costuma viajar pelo interior de si mesmo, penetrando na obscuridade de um longo túnel em busca de sua singularidade. Ele progride em linhas espirais, por labirintos que se fecham e se transformam em circunferências desesperadamente concêntricas. A impossibilidade fundamental de encontrar-se consigo mesmo conduz ao desespero e faz com que o homem não encontre a porta de saída.
A arte de viajar por dentro das pessoas, eis uma das essências bergmanianas. A viagem comoforma simbólica de atingir um objetivo, ou como um meio de estruturar o próprio filme. "Uma lição de amor", "Sonhos de mulheres", "Morangos silvestres", "O rosto" são filmes de viagens. Como o é também e principalmente "O silêncio", desde a primeira imagem do trem, dos compartimentos-células, depois por tudo o que vemos: a obscuridade do longo túnel, o cortejo lento dos tanques, a paisagem estranha. Do trem nós passamos ao hotel, uma prisão ainda, a despeito dos largos espaços. E fora do hotel é parecido com dentro: ruas, salas e sombras, paredes velhas, úmidas, manchadas, sombras de transeuntes, transeuntes que são sombras,silhuetas de homens que falam uma língua incompreensível, desconhecida, numa cidade que os geógrafos ignoram.
O interior humano é um planeta a descobrir. É através das viagens constantes a esse mundo desconhecido que Bergman leva o espectador a profundas meditações de caráter metafísico. Em suas viagens, Bergman procura distinguir a vida exterior da vida interior, a vida estética da vida ética, depois de passar desta última a uma vida sobrenatural, para não dizer religiosa. Deus e o amor estão sempre presentes na obra do cineasta, mas se o amor existe como uma realidade no mundo dos homens, Deus permanece como uma dúvida, no seusilêncio e no seu mistério. É justamente afrontando esse silêncio e esse mistério que Bergman lança as suas interrogações e nos remete a uma responsabilidade interior, na qual nos apercebemos ser impossível exprimir o inexprimível, comunicar o incomunicável, traduzir o intraduzível.Cineasta da vida, cineasta do amor, cineasta da morte. Cineasta que vive o sonho e sonha com avida, Bergman nos revela sobretudo o que acontece por dentro das pessoas em seus gestos cotidianos e estados naturais: solidão, medo, sofrimento, angústia entre efêmeras pausas de alegria, segurança, satisfação, conforto.
Cineasta dos interiores, a direção de atores em Bergman se orienta pela sua visão do mundo: intra-uterina. E abrange inclusive a nós, espectadores fechados numa sala escura onde é abolida a fronteira entre personagens e platéia. Procuramos a saída, mas não achamos a porta. A tela é um espelho que nos devolve a nós mesmos. Somos colocados diante de nossa própria irrealidade, abandonados entre a vida e a morte, somos em síntese mistérios insolúveis.
Cineasta do flash back, Bergman vai ao passado e volta ao presente para contar histórias, rompendo com todos os convencionalismos materiais, abrindo novas e fascinantes possibilidades para uma aproximação antes nunca imaginada entre o espectador e o filme, tal como se dá no teatro.
Cineasta da mulher, Bergman usa rostos e corpos femininos para falar da alma feminina, do interior da mulher, de onde irrompe a luz da vida e para onde o ser humano sente o desejo de regressar em busca de suas origens.
Fonte: Armando, Carlos - O Planeta Bergman
Disponível em http://pt.scribd.com/doc/7273782/ARMANDO-Carlos-O-Planeta-Bergman
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